domingo, 10 de junho de 2012

Deuses Americanos (Resenha)

Deuses Americanos (American Gods) é um daqueles livros que você tira da estante sem grandes pretensões. Ok, isso não é verdade... Só o fato de estar escrito "Neil Gaiman" ali em cima, chama atenção por si só. Mas mesmo para os altos padrões do escritor, Deuses Americanos consegue surpreender.

Gaiman é um mestre em incorporar elementos fantásticos em histórias do cotidiano. Inicialmente, estamos acompanhando os primeiros dias de liberdade de Shadow, um ex-detento que em sua última semana como presidiário, descobriu que a esposa, Laura, morreu em um acidente de carro. Algumas páginas depois, o mesmo Shadow, além de começar a receber visitas da esposa recém falecida, se vê no meio de uma batalha entre novos e velhos deuses.

Falando nos deuses, as referências mitológicas são um charme a parte no livro. Encontramos por aqui deuses nórdicos, celtas, eslavos, africanos, entre outros. Todas as culturas devidamente representadas por personagens interessantes e carismáticos.


Um ponto muito divertido que merece destaque é a naturalidade com que o protagonista reage aos eventos mais absurdos. Como já citei acima, ele passa a receber visitas da esposa falecida, além de se envolver nas picuinhas de deuses e demais criaturas mitológicas. Sempre com muita calma, Shadow vai se aprofundando em um mundo sobrenatural que pelo menos a princípio, causaria repulsa e desespero em 99% das pessoas.

Outro destaque fica por conta das últimas páginas dos capítulos, reservadas para uma breve e deliciosa descrição das chegadas dos cultos aos deuses do velho mundo na América.


Contando com uma incrível reviravolta final (provando que até os poderosos deuses podem ser manipulados), digna das artimanhas do mestre Gaiman (que agora mais do que nunca eu acredito ser uma das encarnações de Odin), Deuses Americanos é uma literatura transformadora, muito prazerosa, bem humorada e ao mesmo tempo deprimente. Deprimente por que além de contar uma história com um desfecho infeliz, o livro nos obriga a refletir sobre a implacabilidade do tempo, impiedoso inclusive com coisas que um dia foram extremamente importantes (como os próprios deuses), e também levemente nos conduz a pensar sobre os caminhos vazios que a civilização vem tomando. Mas também nos mostra que em momentos derradeiros, o ser humano consegue despertar consciência, força de vontade e  uma capacidade anormal para "arrumar" as cagadas do mundo, surpreendendo além de nós mesmos, os deuses que um dia cultuamos


Citações de Deuses Americanos

“Eu posso acreditar em coisas que são verdadeiras e eu posso acreditar em coisas que não são verdadeiras, e posso acreditar em coisas que ninguém sabe se são verdade ou não. Eu posso acreditar em Papai Noel e no Coelho da Páscoa, e na Marilyn Monroe, e nos Beatles, e no Elvis e no Sr. Ed. Eu acredito que as pessoas podem se tornar perfeitas, que conhecimento é infinito, que o mundo é comandado por carteis bancários secretos e é visitado regularmente por alienígenas, aliens bonzinhos que parecem com lemures enrugados e aliens malvados que mutilam gado e querem roubar nossa água e nossas mulheres. Eu acredito que o futuro será uma bosta e eu acredito que o futuro será o máximo e eu acredito que um dia a White Buffalo Woman vai retornar e chutar a bunda de todo mundo. Eu acredito que todos os homens são só garotos gigantes com graves problemas de comunicação e acredito que o declínio do sexo de qualidade nos Estados Unidos coincide com o declínio dos cinemas drive-in em todos os estados. Eu acredito que todos os políticos são sacanas sem princípios e ainda acredito que eles são melhor do que a alternativa. Eu acredito que a Califórnia irá afundar no oceano quando o grande terremoto vier, enquanto que a Flórida irá se dissolver em loucura e crocodilos e lixo tóxico. Eu acredito que sabonetes antibacterianos estão destruindo nossa resistência a sujeira e doenças até que um dia nós todos seremos extintos com um vírus qualquer de resfriado como os marcianos em Guerra dos Mundos. Eu acredito que os melhores poetas do século passado foram Edith Sitwell e Don Marquis, que jade é esperma de dragão fossilizado, e que há milhares de anos atrás em uma outra encarnação eu era um xamã siberiano com um braço só. Eu acredito que o destino da humanidade está nas estrelas. Eu acredito que os doces realmente eram mais gostosos quando eu era criança, e que é aerodinamicamente impossível que uma abelha voe, que luz é uma onda e uma partícula, que existe um gato em uma caixa em algum lugar que está vivo e morto ao mesmo tempo (mas se eles não abrirem a caixa para alimentá-lo ele eventualmente só estará morto de dois jeitos diferentes), e que existem estrelas no universo bilhões de anos mais velhas do que o próprio universo.  Eu acredito em um Deus pessoal que se importa comigo e se preocupa e observa tudo o que eu faço. Eu acredito em um Deus impessoal que botou o universo pra rodar e foi-se embora passear com sua namorada e nem mesmo sabe que eu estou viva. Eu acredito em um universo vazio e ateu, de caos casual, ruído branco e sorte pura e cega. Eu acredito que qualquer um que diga que sexo é superestimado simplesmente não o fez direito. Eu acredito que qualquer um que afirme saber o que está acontecendo também irá mentir sobre as coisinhas pequenas também. Eu acredito em honestidade absoluta e mentiras sociais aceitáveis. Eu acredito no direito das mulheres escolherem e no direito dos bebês de viverem, e que apesar de toda vida humana ser sagrada não tem nada de errado com pena de morte se você puder confiar no sistema judiciário, e que ninguém, exceto um idiota, confiaria no sistema judiciário. Eu acredito que a vida é um jogo, que a vida é uma piada cruel, e que a vida é o que acontece quando você está vivo e que você poderia até relaxar e aproveitá-la.“


“A língua de Laura tremia dentro da boca de Shadow. Estava fria e seca, e tinha gosto de cigarro e de bile. Se Shadow ainda tinha alguma dúvida a respeito de sua mulher estar morta ou viva, o mistério acabou ali."


"Tão certo como a água é molhada e os dias são longos, um amigo sempre o decepciona no final."


“A linguagem é um vírus (…), a religião é um sistema operacional e (…) as orações são a mesma coisa que a porra do spam.” 


Shadow: Minha mulher.
Wednesday: Aquela que já morreu.
Shadow: Laura. Ela não quer continuar morta. Ela me disse, depois que me libertou dos caras do trem.
Wednesday: O ato de uma esposa maravilhosa. Libertar você da prisão vil e matar aqueles que o teriam machucado. Você deveria apreciá-la, sobrinho.
Shadow: Ela quer ficar viva de verdade. Dá pra fazer isso? É possível?
Wednesday ficou tanto tempo sem dizer nada que Shadow começou a se perguntar se ele escutara a pergunta ou se tinha caído no sono com os olhos abertos. Então disse, olhando para frente, para o vazio: - Sei um encanto que pode curar dor e doença, e que pode tirar o sofrimento do coração daqueles que sofrem. Sei um encanto que cura com um toque. Sei um encanto que faz as armas do inimigo se virarem pro outro lado. Sei outro encanto que me solta de todas as amarras e abre todas as fechaduras. Um quinto encanto: eu consigo pegar uma flecha no ar e não me machucar - as palavras soavam pesadas, urgentes. O tom amedrontador não estava mais lá, o sorriso cínico também não. Wednesday falava como se recitasse as palavras de um ritual religioso, ou como se estivesse se lembrando de alguma coisa obscura e dolorida. - Um sexto encanto: feitiços feitos pra me machucar só vão machucar quem os enviou. Sétimo encanto que eu sei: posso apagar o fogo apenas olhando para ele. Oitavo: se algum homem me odiar, eu consigo ganhar sua amizade. Nono: eu posso fazer o vento dormir com o meu canto e posso acalmar uma tempestade durante tempo suficiente pra levar um barco até a costa. Esses foram os primeiros nove encantos que eu aprendi. Durante nove noites eu fiquei pendurado na árvore nua, com a lateral do meu corpo perfurada pela ponta de uma lança. Eu balançava de um lado para o outro e sacolejava aos ventos frios e aos ventos quentes, sem comida, sem água, um sacrifício de mim pra mim mesmo, e os mundos se abriram. Como décimo encanto, eu aprendi a dispersar bruxas e fazê-las rodopiar no céu de modo a nunca mais encontrarem seu caminho de volta às suas próprias portas. Décimo primeiro: se eu cantar quando uma batalha eclodir, posso fazer com que guerreiros passem pelos tumultos ilesos e intactos e posso trazê-los de volta a suas famílias e aos seus lares, sãos e salvos. Décimo segundo encanto que sei: se eu vir um homem enforcado, posso tirá-lo da forca para que sussurre no nosso ouvido tudo de que consegue se lembrar. Décimo terceiro: se eu jogar água sobre a cabeça de uma criança, ela não vai sucumbir na batalha. Décimo quarto: sei os nomes de todos os deuses. De cada um dos malditos. Décimo quinto: sonho com poder, com glória, e com sabedoria, e eu posso fazer as pessoas acreditarem nos meus sonhos - a voz dele estava tão baixa agora que Shadow precisava se esforçar para ouvi-lo por sobre o barulho do motor do avião. - Décimo sexto encanto que sei: se preciso de amor, posso transformar a mente e o coração de qualquer mulher. Décimo sétimo: nenhuma mulher que eu desejo vai desejar mais alguém na vida. E eu ainda sei um décimo oitavo encanto, que é o maior de todos, e esse eu não posso contar para nenhum homem, porque é um segredo que ninguém mais além de você sabe, é o segredo mais poderoso que pode existir - ele suspirou e então parou de falar. Shadow sentia seus pelos se arrepiando. Era como se tivesse acabado de ver uma porta se abrindo para outro lugar, em algum lugar, a muitos mundos de distância, onde homens enforcados balançavam ao vento em todas as encruzilhadas, onde bruxas guinchavam por cima das cabeças de todos no meio da noite. - Laura - foi tudo o que disse.
Wednesday virou a cabeça, olhou bem dentro dos olhos cinza-pálido de Shadow com os seus próprios. 
- Eu não posso fazer com que ela viva novamente. Nem sei por que ela não está tão morta quanto deveria estar.




"Três pessoas podem guardar um segredo, se duas delas estiverem mortas."


“Esses são os deuses que foram esquecidos e agora eles podem até estar mortos. Só podem ser encontrados em histórias áridas. Eles se foram, todos eles, mas seus nomes e suas imagens continuam entre nós.” 


“Esses são os deuses que já perderam a consciência da memoria. Até mesmo seus nomes se perderam. Desde há muito tempo, seus totens foram quebrados e derrubados. Seus últimos sacerdotes morreram sem passar o segredo adiante. Deuses morrem. E quando morrem de verdade, ninguém chora por eles nem se lembra deles. As idéias são mais difíceis de matar do que as pessoas, mas também podem ser assassinadas no fim.”


"Você é grandão ― disse Nancy, olhando nos olhos cinza-claro de Shadow com seus olhos velhos cor de mogno. ― Um pedaço de mau caminho, mas eu preciso falar, você não parece muito inteligente. Você lembra meu filho, que é tão imbecil como se tivesse comprado sua burrice numa liquidação de dois por um.” 


“― Quando se é diretor de funerária, não se faz perguntas a respeito da saúde de ninguém. As pessoas ficam achando que você está conferindo se vai ter trabalho.” 


"Laura olhou para ele com seus olhos azuis mortos:
- Eu quero estar viva novamente - disse ela.
- Não nesta meia-vida. Eu quero estar realmente viva. Eu quero sentir meu coração batendo no meu peito de novo. Eu quero sentir o sangue se movendo através de mim, quente, salgado e real. É estranho, você acha que não pode senti-lo, o sangue, mas acredite em mim, quando ele para de fluir, você sentirá - ela esfregou os olhos, borrando o rosto com o vermelho das sujeiras de suas mãos.
- Olha, é difícil... Você sabe por que as pessoas mortas só saem à noite? Porque é mais fácil se passar por um vivo, no escuro. E eu não quero ter que me passar, eu quero estar viva!”


Shadow: Então... Quem eram aqueles caras que me pegaram no estacionamento? O senhor Wood e o senhor Stone?
Wednesday: Só agentes, membros da oposição. Gente ruim.
Shadow: Eles acham que são gente boa.
Wednesday: Nunca aconteceu uma guerra entre dois lados que não se achavam corretos. As pessoas perigosas fazem o que querem somente e apenas porque acham que é o certo, sem sombra de duvida. E é isso que as torna perigosas.
Shadow: E você? Por que faz o que faz?
Wednesday: Por que eu quero fazer.
Shadow: Então está tudo certo - respondeu sorrindo.


"Ouça. A raposa chegou aqui primeiro e o irmão dela era o lobo. A raposa disse que as pessoas vão viver pra sempre. Se morrerem, não vão ficar mortas por muito tempo. O lobo disse que não, as pessoas vão morrer, as pessoas precisam morrer, elas PRECISAM morrer, ou vão se espalhar e cobrir o mundo, e comer todos os salmões e todos os caribus, e todos os búfalos, vão comer todas as abóboras e o milho. Daí um dia o lobo morreu e disse pra raposa trazê-lo de volta à vida. A raposa disse que não, os mortos têm que ficar mortos. Você me convenceu disso. E ela chorou quando disse aquilo. Mas ela disse aquilo, e ponto final. Agora o lobo manda no mundo dos mortos e a raposa vive para sempre sob o sol e sob a lua, e ainda chora pelo irmão."


"Não diga que um homem é feliz - disse Shadow - até que ele esteja morto."



"Sem indivíduos, enxergamos apenas os números: mil mortos, cem mil mortos... O número de vítimas pode chegar a um milhão. Com histórias individuais, as estatísticas se transformam em pessoas – mas até isso é mentira, porque as pessoas continuam a sofrer em números que, por si só, são entorpecentes e sem sentido.  Olhe e  veja a barriga inchada do menino e as moscas que andam no canto dos olhos dele, e seus membros esqueléticos,  vai ajudar se você souber seu nome, idade, sonhos e medos? E se ajudar, será que não estamos prestando um desserviço à irmã dele, que está ali ao lado, estirada na poeira abrasadora, uma caricatura distorcida e inchada de uma criança humana? E daí, se lamentarmos por essas duas crianças, será que agora elas passarão a ser mais importantes para nós do que as milhares de outras crianças atingidas pela mesma fome, milhares de outras vidas jovens e contorcidas que logo se transformarão em alimento para as moscas?
Nós desenhamos nossos limites ao redor desses momentos de dor… Continuamos em nossas ilhas, e eles não podem nos ferir. Ficam escondidos sob uma cobertura suave e segura para que escorreguem, como ervilhas, de nossas almas sem que sintamos verdadeiramente a dor."


"Tinha só um cara na Bíblia inteira pra quem Jesus prometeu pessoalmente um lugar no paraíso do lado dele. Não foi pra Pedro, nem pra Paulo, nem pra nenhum daqueles caras. Ele era um ladrão condenado, que estava sendo executado. Então, não fica tirando uma dos caras no corredor da morte. Talvez eles saibam de alguma coisa que você não sabe."

Nota: ★★★★★
"Cada hora fere. A última mata."